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Infração administrativa e “crime de responsabilidade”

* Amadeu Garrido de Paula

Talvez o aspecto mais trágico na atual passagem brasileira consista no rompimento do diálogo social. Colegas contra colegas, amigos contra amigos e na interioridade mais íntima das famílias. Consequências podem ser irreversíveis, enquanto as estrelas continuarão a iluminar as noites e a política brasileira a tomar novos rumos, para o bem ou para o mal. Ambos os grupos do bem e do mal apostam no bem. Poderá ser tarde para reatar vínculos e a harmonia.  A dissidência vem da parca análise de corretos conhecimentos epistemológicos, ciência que se debruça sobre os métodos do saber, provavelmente a mais intrincada de todas, tanto que filosofia não significa sabedoria, mas amizade à sabedoria. Somos uma experiência “sapiens” extremamente recente se considerarmos os milhões e bilhões de anos cósmicos, se consideramos os fenômenos do universo em sua abrangência. Contudo, cada qual se considera dominador de todas as percepções possíveis e concordar com o outro é uma demonstração de fragilidade, de deficiente educação ou de pálida cultura.

O homem somente se tornou homem graças à linguagem, ferramenta de sua capacidade de comunicação, de intercâmbio de ideias e opiniões e de formação de consensos e dissensos. Se a vida humana sobre a terra é considerada um milagre por muitos sábios, porque permaneceu latente durante bilhões de anos, sem manifestação e, repentinamente, num período determinado e curto, veio à tona, por meio da reprodução horizontal dos menores e menos complexos seres possíveis, a construção da sociedade, em que cada qual cumpre papel diverso em relação de complementaridade, e tudo resulta no exercício de um conjunto de funções díspares que permite a sobrevivência de todos, é um milagre maior ainda. O que se pode afirmar de duas crianças nascidas simultaneamente, ambos com talentos especiais, exemplificativamente, uma para ser um grande juiz da Suprema Corte e outra um dos melhores cirurgiões? Sabe-se que os talentos são aperfeiçoados, mas sua origem antecede ao nascimento. Como não é possível que juiz e cirurgião se entendam à primeira vista sobre determinados assuntos, a linguagem criou uma riqueza incomensurável, cuja exploração em minúcias serve para aproximar e construir.

Todavia, a linguagem também é fonte de paradoxos e do fenômeno que os linguistas denominam de oximoro, locução que reúne palavras de sentido oposto, retórica antiga, como no exemplo da expressão jurídica “silêncio eloquente”. A linguagem surgiu enquanto esforço de todos os povos que habitavam a terra para se comunicarem, inclusive por gestos. Tem um fundo comum, uma argamassa indiferenciada, porém, no evolver da história, ganhou espaço a “Torre de Babel”, de modo que temos, hoje, suas variadas expressões, de país para país e de regiões para regiões, diferenciações cada vez mais cultivadas pelo empenho de pais e mestres para transmitir seu modo de falar às novas gerações.

Dada a juventude da humanidade, acima referida, a linguagem não atingiu um ponto de maturidade capaz de fornecer a todos a segurança de que necessitamos para adequar convenientemente nossa consciência aos fatos objetivos, é dizer, aperfeiçoar nossa inteligência para que equívocos sérios não comprometam nossa convivência. Por isso é que muitos filólogos dizem que a linguagem é, também, um meio de ocultar e não de revelar a verdade das coisas.

Ultrapassada essa longa, porém necessária digressão, não poderíamos deixar de nos referir a um discurso manifestado no Senado da República pelo Senador Antonio Anastasia, que colegas seus, que se disseram embevecidos, aplaudiram como uma aula magistral de direito constitucional concernente ao tema do momento, o impeachment ou impedimento. Em tom didático e sem nenhuma afetação professoral, o parlamentar traçou um paralelo entre os crimes comuns, previstos no Código Penal, e o “crime de responsabilidade”, de que é acusada a Presidente da República.

Permitimo-nos apenas alguns poucos acréscimos, que não foram feitos pelo autor da peroração em razão do tempo limitado. Crime é uma conduta expressamente prevista, com todas as letras, no Código Penal, contrária ao direito e imputável a alguém por culpa ou dolo, que se caracterizam pela falta ou presença de propósito lesivo. Não há em nosso ordenamento jurídico crime além dos descritos nas leis penais.

Nossa Constituição incorporou a linguagem de “crime de responsabilidade”. Não lhe cabia descrevê-lo, o que se fez por lei ordinária. Os desatinos do governo Dilma se subsumem como uma luva às expressões típicas da lei.

De início, temos a infração administrativa, a hipótese de irresponsabilidade na condução da coisa pública. Por si só já justifica o impedimento, sem prejuízo de sanções civis e penais.  “Pedaladas fiscais”, abertura de crédito sem lei autorizativa, desvio de finalidade para nomear Ministro sem observância dos requisitos contemplados no art. 37 da CF e, ainda, pelas mesmas e ainda mais graves razões, barganha de ministérios com grupos totalmente incapazes de cumprir o preceito da eficiência, formam, como disse a professora de direito da USP Janaína Paschoal em seu brilhante pronunciamento aos parlamentares, um conjunto de imoralidades suficiente ao afastamento de qualquer governo.

Como não temos o salutar instituto do “recall”, só resta o impedimento. A ele está sujeito o agente público que não cumpre a Constituição ou leis infraconstitucionais. O bem jurídico tutelado pela fiscalização política do parlamento é a correta administração da coisa e das finanças públicas, que não podem ser dissipadas, deliberadamente ou por meros erros de atuação governamental. Logo, quem não respeita o sistema normativo, quem recorre a pedaladas ou maquiagens fiscais, quem abre créditos suplementares autoritariamente, sem autorização do Legislativo, quem incorre em desvio de finalidade, como a nomeação de alguém Ministro não em vista do bem comum, mas para auxiliá-lo a escapar das malhas da lei,  quem comercializa Ministérios para salvar-se está sujeito ao afastamento do governo, como forma de preservação dos superiores interesses populares; depois se haverá com os juízes.

Assim compreendida, substancial e não apenas semanticamente, a expressão “crime de responsabilidade”, como pontuou, a bem da simplicidade e da pedagogia jurídica, o Senador Anastasia na tribuna do Senado em 29/3, resta evidente que a Presidente incorreu em infração administrativa, dissipadora de nossas finanças, o que, por si só, justifica o impedimento previsto na Carta da República.  À luz do bom direito, cai por terra a tresloucada invencionice de “golpe”, outra manipulação da linguagem, da qual se socorre o governo para manter-se no poder a qualquer preço.

Amadeu Garrido de Paula, é um renomado jurista brasileiro com uma visão bastante crítica sobre política, assunto internacionais, temas da atualidade em geral. Além disso, tem um veio poético, é o autor do livro “Universo Invisível”.

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